O colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), instância
máxima do órgão regulador do mercado de capitais, terá que decidir, em
data a ser marcada, se é válida a chamada "super ação" preferencial
proposta pela companhia aérea Azul. O modelo traz ao país a mesma
discussão das "super votantes" americanas. O debate promete ir além das
discussões sobre 'tag along' e incorporações de ações, tradicionais
discussões do mercado local.
Está em jogo muito mais do que o futuro da Azul. Trata-se de, mais do
que uma estrutura societária, um novo caminho econômico - um
controlador 'super' alavancado, sem holdings ou estruturas em cascata. A
situação também é pouco comum do ponto de vista regulatório: os efeitos
da decisão da CVM desta vez podem extrapolar o mercado de capitais. Com
os argumentos em jogo, uma recusa da autarquia à companhia aérea
interditaria essa rota também para empresas fechadas.
Tudo isso porque a justificativa usada pela área técnica do regulador
para barrar o registro de companhia aberta à Azul foi de 'ilegalidade'
da estrutura.
A Superintendência de Relações com Empresas (SEP), departamento da
CVM responsável por essa análise, considerou que o modelo fere a Lei das
Sociedades por Ações, que determina que as ações preferenciais devem
representar, no máximo, 50% do capital social da empresa.
Se replicada pelo colegiado, a decisão afetará também empresas
fechadas. A Lei das S.A. é uma só: vale para companhias fechadas e
abertas. O colegiado, formado pelos quatro diretores mais o presidente,
avaliará o assunto apenas se a SEP mantiver o entendimento após o
recurso da Azul.
Mesmo que, ao final da análise, tivesse um selo de 'ilegal' atribuído
pela CVM, a estrutura da Azul como empresa fechada não precisaria ser
desfeita, conforme apurou o Valor - a menos que algum
sócio atual assim solicite na Justiça, com base no debate realizado na
autarquia. Porém, companhias ainda por vir, mesmo que não fossem ou
pretendessem ser abertas, não poderiam usar nada semelhante.
A Azul quer abrir capital usando o mesmo estatuto social que já
possui hoje e que abriga investidores nacionais e estrangeiros, como TPG
Growth, Weston Presidio e o Gávea, fundado pelo ex-presidente do Banco
Central Armínio Fraga, além dos grupos Bozano e Águia Branca.
Em sua estrutura atual - que seria válida também para os investidores
de bolsa - cada ação preferencial dá direito a dividendo 75 vezes o
valor pago à ação ordinária. Essa proporção se aplica ainda nos casos de
oferta por alienação de controle e de reembolso por liquidação da
companhia. Portanto, a ação preferencial da Azul tem valor econômico de
75 ordinárias. Como efeito prático, é como se chegasse ao Brasil a mesma
lógica por trás das 'super ações votantes' dos Estados Unidos, já
usadas por Google, Ford, e até mesmo na Berkshire Hathaway, de Warren
Buffett. Só que lá cada ordinária vale mais do que um voto, algo que a
Lei das S.As. claramente veta.
David Neeleman, o criador da Azul, têm 67% das ações ordinárias e
4,9% das preferenciais. Do valor econômico da companhia, porém, tem o
equivalente a apenas 9,2%. Na prática, sem considerar as
responsabilidades legais como dono de empresa de aviação civil, essa é a
sua exposição ao risco econômico do negócio.
Neeleman, que tem dupla cidadania após nascer no Brasil e viver nos
Estados Unidos, controla a Azul junto com as famílias Chieppe e Caprioli
- que vieram da Trip, adquirida no ano passado. Juntos, os sócios
alcançam o mínimo de 80% do capital votante nacional exigido pela
legislação do setor, fiscalizado pela Agência Nacional de Aviação Civil
(Anac).
Com a estrutura de capital da Azul, no limite, Neeleman poderia
garantir o controle e ter só 1,3% da exposição econômica à Azul. É
justamente esse desalinhamento entre poder político e exposição
econômica que está por trás da discussão na CVM. Mas é também ele que
permitiu a criação de um negócio com tamanha exigência de capital.
No entendimento da autarquia, ao limitar o capital preferencialista a
50% do total, a Lei das S.A., após a reforma em 2001, estabeleceu essa
alavancagem de poder como máxima. O regulador entende que o capital
aportado deve guardar proporção com o poder político.
A defesa da Azul do contará com parecer do jurista Nelson Eizirik.
O Valor apurou que os argumentos da companhia
consideram a conclusão da CVM como uma "interpretação" da legislação sem
respaldo técnico, todavia. A avaliação feita pelo regulador não estaria
registrada na Lei das S.A. O texto limita as preferenciais a 50% do
total em quantidade de ações. Mas nada trata sobre os limites de
benefícios concedidos a esses papéis. Ao contrário, a legislação
estabelece o "piso" das vantagens que essa espécie de ações deve ter
sobre as ordinárias.
Além de constar da defesa da Azul, diversos advogados lembraram ainda
que a própria CVM admite que recursos de grandezas diferentes tenham
direito a uma mesma fração do capital. Este entendimento está
registrado, segundo especialistas, nos pareceres 1 e 2 da autarquia - os
mais antigos, portanto. Ao negar que a relação seja de 75 para 1, o
regulador estaria tentando quantificar os limites dessa diferença.
Há um grupo de investidores incomodado com a proposta da Azul. Para
eles, a estrutura da companhia vai na mão oposta de todos os avanços
promovidos no mercado brasileiro, entre os quais, a criação do Novo
Mercado. Ainda que a CVM esteja "interpretando" a Lei das S.A.,
acreditam se tratar de uma liberdade que a autarquia possui.
Mas também há aqueles que defendem que todas vantagens e desvantagens
de um negócio - seja na sua estrutura societária ou no ramo de atuação -
devem ser oferecidos para que o mercado, ou seja, a oferta de recursos
pelos investidores, determine quanto vale.
Ninguém nega que o alinhamento entre poderes políticos e exposição
econômica é benéfico às companhias. Porém, muitos veem mais problema de
se "interpretar" a lei em busca do desejável do que ter de se conviver
com essa nova janela no mercado brasileiro. "Abre espaço para enorme
discricionariedade da CVM", disse um dos especialistas.
Há uma preocupação a respeito dessa inédita porta que a Azul pode
abrir, caso tenha aval da CVM. O conceito do 'super voto' entraria
definitivamente no Brasil, mas pelo avesso. Há quem veja na recusa do
regulador uma autodefesa: a tentativa de mitigar futuros desafios que
teria de enfrentar caso abra esse caminho.
O Valor apurou que a Azul, inicialmente inflexível
quanto a alguns benefícios políticos que poderia garantir aos
preferencialistas, agora estaria disposta a mudar se pudesse melhorar a
situação na CVM. Os investidores desses papéis ainda podem vir a ter
vagas garantidas no conselho de administração e direito a voto em
questões específicas.
Consultada, a Azul preferiu não comentar o assunto. A CVM também não concedeu entrevista.
Não escapou ao setor o comentário de que um dos primeiros grandes
desafios de Leonardo Pereira, como presidente da CVM desde novembro de
2012, é justamente na aviação civil e na Azul, concorrente da Gol,
empresa na qual foi vice-presidente financeiro e de relações com
investidores. Consultada sobre este ponto, a autarquia descarta qualquer
situação de conflito no caso. E lembra que existem, inclusive, regras a
respeito para balizar procedimentos ou decisões internas.
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