Fonte: Valor Econômico
Postado
por: Edison Fernandes
Nos
contos de fadas, é comum que os romances sejam construídos com base em
choques de culturas. O conflito da trama, então, é a diferença cultural, que
pode ser social, financeira, étnica ou de outra natureza.
Veja-se,
por exemplo, o caso da “Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen. Nesse
belo conto, uma criatura marinha mitológica se apaixona por um ser humano e,
com isso, o conflito é instaurado.
Pensar
sobre a adoção do padrão internacional de contabilidade, conhecido como
"International Financial Reporting Standards" (IFRS), em um país
como o Brasil, faz lembrar esses contos de fadas, dado o conflito cultural
existente.
O
berço dos IFRS é Londres, no contexto do "common law" como sistema
jurídico. Tal estrutura jurídica se caracteriza pelo respeito essencial a
princípios, aos costumes e à jurisprudência, isto é, as decisões reiteradas
das cortes britânicas. A lei escrita não esgota, absolutamente, a
regulamentação de determinado assunto.
Por
outro lado, o Brasil está inserido no contexto do "civil law", do
direito codificado, de origem românica, onde a lei escrita (positiva)
desempenha um papel demasiadamente forte na regulação da vida social. Deste
lado de baixo do Equador, vigora a legalidade: “ninguém será obrigado a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (artigo 5°, II da
Constituição Federal).
Lanço
mão de um exemplo para tentar aclarar o conflito cultural: na prática
jurídica brasileira, se determinado dispositivo é retirado do texto legal,
naturalmente, vamos entender que esse dispositivo não mais se aplica,
portanto, deixaremos de observá-lo. O oposto pode ocorrer na prática jurídica
britânica.
E
já vivemos esse conflito cultural desde 2008. A Lei das Sociedades por Ações
conta com alguns poucos artigos para disciplinar as práticas contábeis
brasileiras, enquanto as normas infralegais contam mais de três mil páginas.
Dessa forma, é inevitável que parcela significativa das práticas contábeis
não esteja disciplinada na lei.
Com
o atual Projeto de Código Comercial que tramita no Congresso Nacional esse
choque cultural pode se agravar. De acordo com a proposta em análise, todas,
isso mesmo, todas as normas contábeis sairão do texto legal, passando a ser disciplinadas
única e exclusivamente por textos infralegais.
Ao
mesmo tempo, seguindo nossa tradição jurídica de "civil law", os
principais direitos societários e contratuais continuarão a ser previstos
diretamente na lei formal stricto sensu. Considerando que vários desses
direitos tomam por base os registros contábeis (distribuição de lucro,
aquisição de controle de empresa, cláusulas de garantia etc.), impõe-se a
questão: como compatibilizar os direitos legalmente assegurados e as normas
contábeis totalmente delegadas para o nível infralegal?
Alguns
choques culturais da adoção dos IFRS chegam a ser caricatos, como o caso do
leasing, talvez o exemplo mais marcante: como pode o arrendatário registrar o
bem objeto do contrato de leasing como seu ativo se, juridicamente, a
propriedade desse mesmo bem é mantida para o arrendador? E se assim é, o
referido bem pode ser apresentado como garantia de outra relação comercial do
arrendatário?
A
questão do leasing, em particular, já foi razoavelmente absorvida, mas outras
virão e demandarão uma posição frente à relação entre a lei e a norma
contábil infralegal.
Nos
contos de fadas, o conflito cultural, geralmente, termina com um “felizes
para sempre”, especialmente se a Disney contar a história, como acontece na
“Pequena Sereia”, que casa com seu príncipe encantado. Porém, no texto
original de Andersen, a sereiazinha, depois de ser abandonada pelo príncipe,
vai para o Reino do Ar, uma possível referência à morte.
Edison
Fernandes
Professor da Direito GV, o advogado é titular da Academia Paulista de Letras Jurídicas e membro do Grupo de Estudo sobre Notas Explicativas do CODIM/CPC. |
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segunda-feira, 9 de setembro de 2013
IFRS no direito brasileiro
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