O governo
federal vem dando cada vez mais sinais de que não sabe como lidar com o
processo de convergência dos padrões contábeis brasileiros aos
internacionalmente praticados, propostos pelo IASB, por meio dos famosos
"IFRSs", que, aliás, é da máxima importância para a economia
brasileira.
Como vem se
noticiando, a "nova" contabilidade dá lugar a um sem número de
mudanças
nos
registros contábeis, afetando, dentre outras coisas, tanto as contas
patrimoniais quanto as de resultado.
Dado que no
sistema jurídico brasileiro uma série de tributos tem a sua apuração baseada em
informações produzidas originalmente no sistema contábil, destacando-se o IRPJ,
a CSL, a contribuição ao PIS e à Cofins, é natural que qualquer mudança em tal
âmbito afete aquele procedimento, seja para o bem, seja para o mal.
A Receita,
conhecida como o órgão mais eficiente da administração, cometeu equívoco no
trato desse tema
Provavelmente,
por isso, para não perder o bonde da história, enquanto tramitou no Congresso
Nacional o Projeto de Lei que culminou na edição da Lei nº 11.638, em 2007 -
que deu o pontapé inicial no mencionado processo de convergência -, sempre
restou registrado que as mencionadas mudanças não poderiam surtir efeitos
fiscais, o que de fato acabou contemplado pela lei em causa.
A Lei 11.638
veiculava uma "cláusula de neutralidade" das mudanças contábeis
frente às apurações fiscais bastante ampla, cujo único defeito, em nosso
pensar, era o fato de ser voltada somente para algumas categorias de
contribuintes.
A Receita
Federal, porém, não contente com todo o debate que cercou a Lei 11.638 nem com
o texto da "cláusula de neutralidade" instituída por esta,
manifestou-se em duas oportunidades no sentido de que se algo que não era
considerado como receita, mas passou a sê-lo com a "nova"
contabilidade, deveria, então, integrar a base de cálculo do IRPJ, causando uma
enorme sensação de insegurança no empresariado e nos profissionais que tratam
da matéria.
Diante de
tal desdobramento, o governo federal reiterou que a convergência da
contabilidade brasileira aos padrões internacionais não deveria surtir efeitos,
reformando a "cláusula de neutralidade" por meio da Medida Provisória
nº 449, de 2008, depois convertida na Lei nº 11.941, de 2009, que passou,
então, a valer para todas as pessoas jurídicas e equiparadas, mas com uma
abrangência material menor do que a então instituída pela Lei 11.638.
A regra
hoje, tal como prevista pela Lei n 11.941, é de "neutralidade" quanto
a alterações no regime de reconhecimento de receitas, custos e despesas, não
mencionando nada a respeito de contas patrimoniais e outros temas, inexistindo
previsão legal para a existência de uma "contabilidade tributária".
Vem sendo
noticiado que o governo deseja acabar com o RTT, motivo pelo qual a Receita
Federal iniciou uma série de debates com a sociedade civil, a fim de harmonizar
as apurações de tributos com os novos padrões contábeis.
No meio
desse processo, a Receita encomendou um parecer à Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional para que esta se manifestasse a respeito da amplitude do RTT, mais
especificamente se deveria existir também uma contabilidade tributária, que se
prestaria a todos efeitos nesta seara - apuração de juros sobre capital
próprio, aplicação de isenção na distribuição de lucros ou dividendos,
avaliação de investimentos etc.
A
procuradoria opinou contrariamente ao que a maior parte das empresas vinha
praticando, no sentido de aplicar a neutralidade exclusivamente quanto a
mudanças no regime de reconhecimento de receitas, custos e despesas, afirmando
que, para fins fiscais, toda a contabilidade deveria ser reconstituída segundo
os padrões vigentes em 31 de dezembro de 2007, e, a partir dessa nova versão,
atribuídos os efeitos correspondentes; por exemplo, o valor de lucros
distribuídos excedente ao quanto apurado na "contabilidade
tributária" estaria sujeito à tributação.
Ainda
existia a esperança de que a Receita não fosse adotar o posicionamento da
procuradoria, sobretudo em função da postura que aquele órgão vinha adotando no
trato do tema após o "tropeção" que motivou a criação do RTT. Mas eis
que no último dia 16 foi publicada a Instrução Normativa nº 1.397 e isso
terminou acontecendo.
Como a
Instrução Normativa serve de orientação aos auditores-fiscais nos procedimentos
de fiscalização e na lavratura de autos de infração, é grande o receio do
empresariado de haver questionamentos quanto aos atos praticados desde a
instituição do RTT (são quase cinco anos).
Isso sem
falar no aumento expressivo de trabalho com a elaboração de mais uma
escrituração - para as empresas do setor elétrico, por exemplo, será a terceira
escrituração, somando-se à societária e à regulatória - e do disparate de se
exigir que seja feita uma nova escrituração também para as informações de
empresas no exterior contraladas ou coligadas por ou de empresas brasileiras,
mudando um procedimento há longa data sedimentado, qual seja, de se utilizar o
balanço elaborado segundo as regras do país de origem.
A Receita
Federal, que é conhecida, justamente, diga-se como o órgão mais eficiente da
administração pública, cometeu um grande equívoco no trato desse tema,
contribuindo com o aumento do chamado risco Brasil e da apreensão do
empresariado e de investidores quanto à estabilidade das regras do jogo, o que
se agrava mais ainda pelo fato de a nova orientação carecer de amparo na Lei nº
11.941/09, que regula o RTT.
Renato Nunes
é sócio de Nunes e Sawaya Advogados e autor do livro "Tributação e
Contabilidade"
Fonte: Extraído do Valor Econômico
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