Fonte: Valor Econômico
Parece, mas não éEle tem cara de dívida, nome de dívida e remunera o investidor como dívida. Mas apesar de haver controvérsias, quem emite jura que se trata de um título patrimonial, mais parecido com uma ação do que com um empréstimo tradicional.
Ao conseguir classificar esses títulos dentro do patrimônio líquido, a empresa melhora os índices de endividamento e não precisa registrar o gasto com pagamento de juros aos investidores como despesa financeira na demonstração de resultados, o que aumenta o lucro líquido.
A cereja do bolo é que, ao menos no entendimento dos envolvidos, a Receita Federal deve aceitar a despesa com juros como dedutível para fins de apuração de Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.
Para ter essa série de benefícios, a contrapartida é que a empresa é obrigada a pagar uma taxa de juros mais salgada do que em uma dívida tradicional.
Até agora, apenas a Energisa, do setor elétrico, usou essa novidade no Brasil, que os especialistas chamam de "instrumento híbrido de capital e dívida". Mas os bancos de investimento estão oferecendo o mecanismo, comum nos EUA e na Europa, para várias empresas.
A Energisa fez uma emissão de US$ 200 milhões em janeiro deste ano e obteve a aprovação da auditoria KPMG, por meio de um parecer sem ressalvas, para classificar os títulos dentro do patrimônio. Bank of America Merrill Lynch, Morgan Stanley e Santander coordenaram a emissão.
O Valor apurou, no entanto, que há discordância, entre auditores, sobre quais características que um título deve ter para ser classificado dentro do patrimônio e não como uma dívida, de acordo com os critérios da norma contábil internacional IFRS.
Na visão das agências de classificação de risco Fitch e Moody's, por exemplo, a emissão da Energisa foi tratada como dívida.
O instrumento usado pela Energisa ganhou o nome de "nota perpétua com opção de diferimento de juros".
Um título de dívida perpétua, que já vem se tornando comum no Brasil, não tem data de vencimento para o valor principal do empréstimo. A empresa que toma os recursos só tem a obrigação de pagar os juros. Embora em muitos casos o emissor possa recomprar os papéis após cinco anos, o credor não pode exigir que o pagamento seja feito.
No instrumento novo, além de o título ser perpétuo, a Energisa também pode optar por adiar indefinidamente o pagamento das parcelas de juros. A única condição para exercer esse direito é que não haja distribuição de dividendos acima do mínimo obrigatório de 25% do lucro.
No caso do papel emitido, o custo para a empresa é de variação cambial mais 9,5% ao ano. Se houver adiamento, a taxa daquela parcela sobe para 10,5%.
O diretor financeiro e de relações com investidores da Energisa, Maurício Perez Botelho, cita uma lista de características que fizeram a empresa optar por esse instrumento, apesar de mais caro.
Em primeiro lugar, ele fala da própria opção de adiar o pagamento dos juros, que serviria como um seguro. "Em um momento de estresse no mercado, tenho onde me socorrer. Não é a intenção [usar a opção], mas podemos chegar nisso", afirma ele, acrescentando que a empresa tem como prática distribuir 50% do lucro aos acionistas.
Botelho destaca como benefício também o fato de o efeito da variação cambial sobre os papéis não afetar a conta de resultado da companhia, ao contrário do que ocorreria com uma dívida.
Por fim, ele menciona ainda a melhora dos índices de endividamento. Com a captação realizada, entraram US$ 200 milhões no caixa sem que tenha um impacto de mesmo valor aumentando a dívida bruta.
O resultado é que a relação entre a dívida líquida e o Ebitda (sigla em inglês para lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) recuou de 2,5 vezes em dezembro para 2,0 vezes em junho deste ano, conforme dados da Economática.
Uma das emissões de debêntures que a empresa possui tem como limite máximo um índice de 2,75 vezes para essa relação. "Uma operação dessas alivia o endividamento relativo", afirma.
Isso é especialmente importante porque a companhia tem plano de investimento de R$ 1,5 bilhão na área de geração de energia eólica e hidrelétrica para os próximos três anos
Como compensação, o diretor financeiro da Energisa diz que a empresa pagará 1 ponto percentual a mais de juros do que em um título perpétuo tradicional, que teria cupom de 8,5%. São US$ 2 milhões a mais por ano.
Sem falar do caso específico, Marco André Almeida, sócio especializado em instrumentos financeiros da KPMG, afirma que, dentro do IFRS, a definição de qualquer instrumento financeiro, se é dívida ou patrimônio, depende da essência da operação
"A avaliação principal é se a empresa tem obrigação contratual de pagar caixa e se tem o direto incondicional de suspender indefinidamente os pagamentos", diz Almeida. É preciso levar em conta também se existe uma obrigação indireta de pagamento. "E isso tem que ser avaliado caso a caso. Não é um produto de prateleira", afirma o sócio da KPMG. Segundo ele, a firma tem sido consultada em muitos casos, "mas a grande maioria das estruturas propostas não atende a classificação de patrimônio".
De acordo com Botelho, se a "multa" por adiar o pagamento fosse de 5 pontos percentuais a mais de juros, por exemplo, o enquadramento não seria possível.
A discussão sobre qual a essência real nesse tipo de transação é que causa dúvidas. Há quem questione também se de fato a opção de diferir é incondicional, porque se a empresa tiver muito lucro ela pode ter que pagar dividendo acima do mínimo, já que há limite para as reservas.
Procurada, a CVM disse que não comenta casos específicos de companhias abertas. Mas afirmou em nota que, "embora não tenha recebido, até o momento, consulta sobre o assunto, a área técnica vem acompanhando a emissão de títulos do tipo para verificar a adequação das contabilizações realizadas ao que dispõe a legislação societária e as normas contábeis".